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Da força da grana que destrói coisas belas

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Assim é que a arquitetura, entalada em lote exíguo, limitada por todos os lados, feita de um aparente provisório, entre andaimes e fragmentos de terra batida, encravada em um bairro cuja riqueza e diversidade têm sido tão maltratadas pela cidade, merece ser gravada no Livro de Tombo das Belas Artes. Tanto pelo que, sem nenhum favor, ela provou ser, quanto pelo instigar sobre o próprio sentido do belo, o belo que, invocando Lina Bo Bardi, seja capaz de demolir dicotomias entre forma e função e de produzir metáforas realizáveis.
– do processo de tombamento do Teatro Oficina

Passado pouco mais de um ano daquele 17 de fevereiro de 2017, quando o escritor Raduan Nassar foi agraciado com o Prêmio Camões e o então ministro da Cultura pode descortinar ao mundo a indigência moral do governo que representava na cerimônia de entrega, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (contrariando todas as suas decisões anteriores) deu permissão para que o grupo Sílvio Santos construa duas grandes torres que agridem a preservação do patrimônio arquitetônico e histórico do bairro do Bixiga e do Teatro Oficina.

Ainda cabe recurso da decisão, mas é sintomático que um bairro considerado como uma das últimas barreiras de resistência à especulação imobiliária e que mais conta a história da cidade de São Paulo em cada uma de suas ruas e casas receba do poder público não apenas o descaso, mas o desejo manifesto de apagamento e esquecimento da sua memória e identidade.

O movimento Parque do Bixiga congrega moradores e representantes do bairro e defende que o poder público, em vez de capitular ante o poder da especulação imobiliária, faça do entorno do Teatro Oficina um parque de convivência. Com isso, não somente se protegerá o valor arquitetônico, artístico e cultural do Bixiga, como se impedirá que o Teatro Oficina, obra dos arquitetos Lina Bo Bardi e Edson Elito, se descaracterize.

O Teatro Oficina foi tombado pelo IPHAN em 2010 e está sediado na rua Jaceguai, nº 520, há 57 anos. Foi escolhido pelo jornal inglês The Guardian como o teatro mais bonito do mundo. No tombamento, ficou ressaltada a proteção do seu entorno como importante para a preservação do valor material e imaterial do Teatro, devendo o poder público ter realizado estudos para sua preservação.

O grupo Sílvio Santos já tentou comprar o Oficina para demoli-lo (1980), tentou construir um shopping center no entorno (1997) e o mais recente ataque é a construção de duas enormes torres. Mas os órgãos de controle e preservação vinham sistematicamente negando essa possibilidade, até a mais recente decisão do IPHAN.

Estudos realizados por especialistas de renome apontam que o sombreamento do empreendimento afetará, de forma irremediável, a obra de Lina Bo Bardi – e afetaria a luz natural no interior do teatro. O laudo aponta, ainda, que a obstrução visual entre o teatro e entorno, assim como a perda da privacidade, seriam significativas.

A construção de grandes torres tem sido a tônica de uma cidade cada vez mais sem memória e referência arquitetônica. Pequenas casas, às vezes até seculares, aos poucos cedem lugar a grandes edifícios que se tornam verdadeiras fortalezas, geralmente com nome em língua estrangeira, fachada repleta de luzes e seguranças. Triste retrato de uma cidade que em breve não terá como contar mais sua própria história.

Foi um escândalo imobiliário parecido – a construção de torres próximas a prédios tombados como o Forte de São Diogo e o outeiro e Igreja de Santo Antônio da Barra em Salvador – que derrubou um ministro do atual governo, acusado de pressionar o IPHAN para que liberasse a construção de enorme empreendimento em local cujo o entorno é tombado.

Diante do maior escritor brasileiro vivo, o então ministro da Cultura, inconformado pelo fato do premiado ter desnudado o caráter do golpe, revelou uma característica importante do processo político de 2016: a tentativa de apagar os vestígios históricos e edificar no lugar uma outra abordagem narrativa.

Outra característica do golpe é a implosão de diques de contenção estatais entre a preservação do patrimônio (interesse público) e os interesses das grandes corporações privadas. Talvez isso ajude a explicar a mudança de posição de órgãos que durante muitos anos sempre protegeram os interesses do bairro e do tombamento do Teatro Oficina.

Estranhamente, o atual presidente do Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), antes mesmo da análise pelo órgão, antecipou à imprensa que “Silvio Santos deve vencer a guerra com o Oficina”. A declaração do presidente é estarrecedora e merece a atenção do Ministério Público, pois além de antecipar julgamento do colegiado do órgão tenta favorecer os interesses privados em detrimento do interesse público.

É mais ou menos o que se passa na desigual batalha entre a defesa do patrimônio histórico, cultural e arquitetônico e os interesses da especulação imobiliária. A opção da população do bairro pelo parque não apenas daria a São Paulo uma possibilidade de respirar em meio ao sufocamento do concreto, como preservaria o tombamento da monumental obra de Lina Bo Bardi e do próprio bairro.

No caso das torres de Salvador, prevaleceu o interesse público. No de São Paulo, apesar da estranha mudança da posição do IPHAN, ainda há muito pelo que lutar.


PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP


> Acompanhe a coluna Além da Lei, todas as segundas, no site da CULT

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